‘Espinhela caída e pilora’: conheça professora que criou ação de biblioterapia e traduz termos populares do CE
O Dia do Bibliotecário, 12 de março, busca visibilidade para os profissionais da informação e terá programação especial na Biblioteca Pública do Estado

Mais de 30 anos em sala de aula não foram suficientes para levar a exaustão ao semblante da professora de Biblioteconomia Virgínia Bentes Pinto, de 72 anos. Os passos são rápidos entre os corredores da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a mente é ágil com as mudanças do Mundo.
“Olham para a gente como se fosse um trabalho com papel velho, quando uma das coisas mais difíceis de fazer é representação da informação”, reflete. A profissional criou uma coletânea de vocabulários de termos populares na área da saúde, já usou livros para cuidar da saúde mental de crianças e contribui com a formação de inúmeros profissionais.
O Diário do Nordeste conta parte dessa história de dedicação à profissão hoje (12), Dia do Bibliotecário. A data foi criada pelo Decreto nº 84.631, de 1980, para homenagear Manuel Bastos Tigre, considerado o primeiro bibliotecário concursado do Brasil, que atuou no Museu Nacional do Rio de Janeiro.
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Virgínia é bibliotecária pela Universidade Federal do Ceará (UFC), passando por vários cursos de pós-graduação, com doutorado em Ciências da Informação na França e com uma coleção de pós-doutorados na Espanha e no Canadá.
A sede por conhecimento a levou para estudos sobre Inteligência Artificial, Ciências Cognitivas, Preservação Digital, Direito e Genoma, por exemplo. Ainda tem mais por vir.
Os bibliotecários são responsáveis por organizar e gerenciar informações, acervos e documentos, independente do suporte físico ou virtual, como bibliotecas, museus, editoras e centros de documentação, por exemplo. Atuam na aquisição, catalogação e administração de obras, de modo a facilitar o acesso ao público. Também atuam em projetos pedagógicos, culturais, de incentivo à leitura e em treinamentos de fontes informações científicas.
Preconceito linguístico
Filha de uma professora do primário, Virgínia cresceu em meio às leituras numa ilha com 3 horas de distância de Santarém, no Pará. Ao chegar no Ceará, onde ingressou na Faculdade de História, começou a notar as minúcias linguísticas.
“Eu falo chiando até hoje e na época eu dava aula no jardim no maternal, falando ‘doix’, trêx’, ‘Francixco’... As mães pediram para eu sair da turma porque os alunos estavam falando assim também”, lembra.
Bastou uma semana para receber uma carta da escola pedindo o retorno devido à articulação e dedicação exemplares. “Tive aulas para aprender a falar ‘cearense’, mas eu não tinha ideia do que era preconceito linguístico”, reflete Virgínia.
Ainda em ambiente escolar, quando pediu para jogar um papel fora, ouviu o professor dizer “rebole aí” – uma forma regional de indicar para alguém colocar algo no lixo – e foi parar na coordenação para fazer uma reclamação formal.
Pensando nessas situações, surgiu o interesse sobre a origem das palavras, conceitos e termos: “se eu não sei de onde vêm as palavras, eu não sei a origem das coisas”, aponta. Foi quando, na década de 1970, decidiu entrar no curso de Biblioteconomia.
“Fui me dedicando a questões terminológicas, de representação, de pesquisa, porque eu sou a ‘Maria das Curiosidades’, né? Então, tudo que eu podia inventar, eu fazia”, recorda sobre o início da Universidade.
Eu sempre me interessei por áreas de terminologia, de representação. Quando eu fui fazer mestrado, doutorado e pós-doutorados, eu me envolvi por essa área e eu trabalho muito com a área de saúde
Informação e saúde
Um vocabulário de nomes populares para enfermidades foi criado por Virgínia com 400 termos coletados durante uma pesquisa feita no programa de pós-graduação em Ciência da Informação da UFC, de 2014 a 2018. A ideia era facilitar a comunicação entre profissionais da saúde e a população.
Já pensou ouvir no consultório que alguém está com a espinhela caída (dor nas costas) ou com curuba (doença de pele)? Além de termos da população de modo geral, o grupo da professora também buscou comunidades indígenas, como Tremembés, Tapebas e Pitaguaris para reunir as palavras regionais usadas no cotidiano da saúde.
O vocabulário foi adotado por médicos, principalmente os profissionais no início da carreira, e serve para evitar erros de comunicação. Em algumas comunidades indígenas, por exemplo, o mesmo termo pode ser usado para descrever tipos diferentes de doença.
“Agora a gente tá produzindo um outro vocabulário com termos ligados à Covid. Por exemplo, o verbo “covidar” foi usado para falar de pessoas que saiam e contaminavam outras pessoas com a doença e também para as que vão ‘pegar’ todos (numa festa)”, adianta.
Todas essas questões são fundamentais para entender que as pessoas não têm noção do que é a área da biblioteconomia. Nós trabalhamos com todo tipo de documentos e informação
Outra contribuição na área da saúde iniciou-se ainda na década de 1990 com a implantação da biblioterapia em um hospital infantil de Fortaleza. Nessa técnica, são feitas leituras de histórias que possam levar ao autoconhecimento e aliviar o estresse.
Os estímulos podem ser para refletir de forma individual, em diálogo com o mediador ou por meio da escrita. Esse é um recurso complementar à psicoterapia feita no consultório com um profissional da psicologia.
“Nós implementamos isso no Hospital Albert Sabin, na ala dedicada às crianças com câncer, por mais de 10 anos. Também passamos cerca de 5 anos na Casa da Criança, com vítimas de violência, de 7 a 16 anos”, detalha.
De lá, ela lembra de um menino com leucemia que já demonstrava interesse especial pela leitura, mas que perdeu a visão durante o tratamento. “Sentei com ele, conversamos e comecei a escrever o que ele me contava e ‘líamos’ juntos”, recorda.
A biblioterapia não é leitura, mas sim uma terapia por meio da leitura. Não adianta achar que é ler um texto de ajuda. A biblioterapia está dentro da logoterapia, de Viktor Emil Frankl, e podemos ajudar o outro na compreensão dos conflitos e liberação das catarses
Virgínia também guarda na memória o pequeno, vítima de violência doméstica, que não falava de jeito nenhum, mesmo com o avançar da idade.
"Eu contei uma história chamada 'Perdi o meu amor', que se passa numa estrada de ferro. Quando eu estava acabando de contar a história, ele olhou pra mim e disse: 'tia!'. Eu tinha quase um ano na instituição, quando descobri que ele falava", conta.
Atenta ao mundo
Nos últimos 30 anos, Virgínia observou crescer a capacidade de uma informação errada alcançar mais pessoas numa tendência que deve se ampliar nos próximos anos.
“Eu penso que as profissões que trabalham com informação – a Biblioteconomia, o Jornalismo, a Arqueologia, a Museologia – precisam se especializar nesses contextos para trabalhar numa perspectiva de melhor entendimento”, aponta.
Só por meio desse domínio, é possível estabelecer as melhores estratégias para desfazer mentiras que vão desde o uso de medicamentos sem eficácia até questões políticas, como avalia. Virgínia, aliás, segue disposta para continuar na estrada da boa informação.
Ao ser perguntada sobre o futuro, olha para o lado, faz um breve silêncio. “Eu vou continuar estudando, sei que eu vou me aposentar já já, mas eu acho que tenho discípulos”, diz entre risadas. Um novo pós-doutorado, as escritas e as viagens devem continuar inspirando mesmo quando Virgínia já não estiver mais na sala de aula.
Programação
A Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece) comemora o Dia do Bibliotecário com uma programação especial referente à área entre os dias 12 e 16 de março. Os eventos da Semana do Bibliotecário buscam trazer temas relevantes para os profissionais da informação. Confira a programação: